fabio navarro biazetti
44 min readDec 19, 2022

ANTES DO APAGAR DAS LUZES

Uma trilogia pré-epidemia do crack

Parte I:

De como as intenções jamais podem ser definidas através de uma baforada

Foi o sonho consumista de qualquer yuppie nos anos oitenta. Aquele apartamento outrora inexistente geograficamente no iniciante bairro sulista da cidade de São Paulo, seria na época dos empresários nomeados com a supracitada alcunha uma rara ave empalhada e embrulhada no mais caro papel, daqueles papéis que depois de desembrulhada a surpresa pode-se usá-lo confeccionando-se um malabarista baseado em proporções atômicas. Assim era aquele lugar com seus inumeráveis noventa metros quadrados de pisos amadeirados em coloração âmbar jurássico, encobrindo as mazelas de felicidade no espaço destinado à sala, uma sala tão bem encaixada no contexto métrico que possivelmente iria corar as faces de Álvaro de Campos aos berros dentro da tabacaria a dizer hey lá ho ey. Benevolente martírio que expande a quântica da cera, ele certamente morreria pela exatidão mecânica dos encaixes daquele chão exaltando as engrenagens que os criaram, as perfeitas exatidões da meta matemática. Azulejos biofísicos, que, alcançando apenas a metade das paredes da cozinha, delimitavam dois escrupulosos guarda-volumes jardins suspensos. Um corredor desmembrando a bem dividida área útil, contendo em seus arrabaldes pequena limítrofe sacada férrica de gosto alumínio, o grande banheiro com seu box intacto e a privada. Aquela privada possuía maestria capaz de edificar o melhor de seu ser apenas servindo de assento. Nada mais era necessário dentro daquele apartamento a não ser sentir-se inteiro aos pés da beleza em plástico amarelo vômito daquele vaso. Complementando a vista de sua imortalidade a descer ralo abaixo o espelho quadrado, marca registrada de qualquer banheiro recém-inaugurado e seu corredor em estreita luz. Desaguando nas duas sínteses chamadas quartos, tão amadeirados em seu calçamento quanto a sala, porém florescendo uma guinada mais intimista sem a luz necessária aos efeitos hipnóticos da meia fotossíntese artificial, aquela que emudece mulheres e faz corar o mais diabólico dos homens. O piso frio da cozinha, moldado por lajotas que não se pareciam com as mesmas, eram na verdade seda em vime carvão prensado abstrato de Dali. Aquele chão era um acorde da quinta de Bach tocado ao revés, era a suntuosidade de um orgasmo jorrado após anos de reclusão em bispado eunuco, aquele piso da cozinha convidava ereções matinais e a obrigatória água gelada escorrendo pela faringe em todas as manhãs, enquanto suas mãos apoiadas estariam no mármore branco da pia, era o sunita convertido em budista, uma alma iluminada de frio que forçava sua mente redescobrir o aconchego de se beijar o chão.

Porém, e, inversamente proporcional à sua beleza sócio econômica de uma futura classe média emergente, aquele imóvel estava oco, vazio e sem mobília. Os caminhões de mudança só chegariam pela manhã e ainda eram exatas doze badaladas passadas da noite, uma quinta feira tão inóspita que riscada seria do mapa cartesiano até aquele momento, tamanha a tacanhez que acontecia nos minutos noturnos. Mas existia ainda um jogo de armar que proporcionava grande prazer.

De quatro, lambendo o rejunte entre os azulejos, tentando dissolver com a tromba os restos de cocaína deixados para trás após duas enormes linhas colocadas no chão da cozinha como forma de comemoração, e, também pelo simples fato de que não conseguia enxergar onde elas estariam se fossem colocadas no mármore da pia, afinal de contas estava ligeiramente paranoico sobre perder a cocaína devido à algum problema oftalmológico. Cheirava então de quatro no chão, sozinho e sem espelhos reflexivos alarmantes, por segundos imaginando colocar as carreiras na janela da área de serviço, porém ventos.

O dia e sua trajetória de normalidade, para esses padrões, seguiam fielmente o roteiro descrito antes do contrato assinado, iria terminar o frasco de laboratório onde agora a cocaína era acondicionada (uma sábia manobra dos comerciantes), masturbação com um resto de pênis semifalido, fumaria um baseado, tomaria três analgésicos e iria dormir, ou pelo menos tentar no chão da tumba. Talvez não existisse saída a não ser pular do quinto andar e torcer para que no caminho o pescoço resvalasse em alguma grade de proteção, quebrando assim as duas vértebras cervicais, poupando passar pelas eternas eras com fisioterapeutas ou tentativas de encher uma bolsa plástica com o pau preso ao longo tubo de borracha. Mas isso não era necessário, pois bem sabia quem com sofreguidão de uma parturiente aos solavancos estava no portão de entrada. Não é necessário um nome que dê cor ao relato, um segredo bem consumido pelo tempo será a alcunha de meu amigo em drogas, Hercleto Pantos.

Hercleto apresentou-se pela primeira vez quando ainda era residente em meu primeiro apartamento na zona sul, bairro Santa Catarina, alugado por módico preço e sem a menor intenção em ser mobiliado. Época onde ocorreu o caso com a produtora de televisão -fazia vezes de modelo- que dividia seu gosto por cocaína com o meu por problemas emocionais e pessoas perturbadas, além de cheirar anestésico de cavalo aos sábados. No dia do primeiro enlace com Pantos, voltava de um desses encontros, rezando para que pudesse deitar e acordar no dia seguinte vivo.

Ao abrir a porta do elevador quase sem êxito, uma voz mais grave curando-se de uma faringite pediu um minuto, era ele. Instantaneamente entendi que a espontaneidade de Hercleto era uma de suas mais apaixonantes características, instinto de sobrevivência elevado ao patamar divino, sua fala não possuía nada de severo e pelo muito contrário era como se alimentasse desse feedback vocálico, uma restrita dieta em trinta e oito rotações. Amigos nos tornamos de imediato e assim se fez, até aquele dia, onde as luzes estavam em vias de apagar-se.

Todos os dias da minha vida eu ouço sua voz me chamando no elevador:

“Escuta, você fuma um baseado? ”.

A noite semifria como eram todas as de junho naqueles arredores do sistema urbano de São Paulo, existia um mísero silêncio naquele ligeiramente entediante bairro. Nada de pássaros, ou melhor, haviam alguns mortos como a brisa gelada e isso era algo reconfortante. São Paulo tem essa artéria de melancolia em sua área urbana a confortavelmente estabelecer afagos em nossas almas, algo muito longe da castração mecânica que insistem em dar à cidade, a megalópole de ferro e carvão desumanizante construída em zeros e uns. O que existia era calmaria perversa que inverte as imagens em pleonasmo na sua cabeça, sempre aos milésimos de segundos, pausadamente como o prender a respiração antes do ejacular, como na última terminal respiração, o silêncio antecedendo o trágico.

Aquele ensurdecer no interfone apenas deslocou porções de ar, porém nada conseguiria me mover do mais baixo patamar do chão. Outro toque e não há movimento, a glande inerte apenas fica colada ao pavimento, mais alguns segundos e percute-se novamente a sineta de entrada, o corpo avermelha-se e não consegue levantar, outro toque, nada responde, o mundo torna-se inerte, outro e outro toque. É assim que se entende a insistência de Hercleto, pois não existem pensamentos suficientes para preencher o espaço de tempo entre os acordes de chegada. Sempre exato, agora repetidamente outra e outra vez. Sendo assim, existe o levantar do chão, criando um suspiro do outro lado da linha no interfone, cansaço repleto nas últimas cinzas de cigarro. A voz dele estava mais rápida que a normalidade, essa foi a isca vermelha e desencadeou o reflexo, era preciso tomar as chaves do carro e sair de casa, acompanhado de uma última cerveja e o baseado Morfeu, enquanto cortaria o petróleo compacto seco na Vinte e Três de Maio. As únicas palavras de Pantos foram:

“ Você precisa conhecer isso”.

Até a entrada em solavancos do Viaduto Júlio de Mesquita Filho, nosso ator principal escondeu o cigarro de maconha e disse que nada mais seria o mesmo depois da minha primeira “paulada”, entendi então pela primeira vez que no futuro a simples menção dessa palavra teria fisiológicas reações no corpo, violentas ou mais brandas de acordo com o futuro, mas era preciso seguir e terminar aquele pacote de cigarros ainda hoje. A paranoia de não ter o que fazer mostrava-se inteira, e as surpresas estavam longe de terminar.

Cada pedaço da cidade deixado no limbo do passar horas, dias e anos, refletia algo nunca desejado por aqueles que residiam na lateralidade. A sujeira das ruas, os restos humanos vagando por entre os abrigos das bancas de jornal, a virulência do correr antes de ser atropelado, a fuligem nos rostos escondidos como uma equipe de elite do exército, vagando através do concreto, derrubando soldas divisoras dos níveis sociais, todas as coisas que não servem ou não encaixam nos moldes de inexatidão calculada são colocadas sempre à margem do que se condicionou vida. A ideia até poderia obter algum sucesso se as dimensões do Universo fossem mais achatadas do que circulares e seus cantos não estivessem também localizados em seu centro. Isso tornou a cidade um grande aquário violento nas arestas, reflexivo em todos os passantes tentando esconder as faces pálidas nas sombras da vocação cosmopolita, e o pior, mesmo enxergando seus iguais, a insistência em se jogar tudo aos cantos do ostracismo separatista permeou a evolução urbana. Bairros centrais como Campos Elíseos com o decorrer dos anos não mais interessavam aos navegantes abastados pelo aumento populacional e desvalorização imobiliária, o que dentro de uma sociedade onde a valorização do indivíduo é intimamente ligada ao valor monetário criou espaços intermináveis de separação social. As castas separam-se e os afastados multiplicam-se e isso em uma dimensão circular cria milhares de locações e pessoas que serão inevitavelmente colocados debaixo do tapete.

Foi assim nos bairros e assim era nas proximidades da Estação da Luz e Centro, locais cuidados apenas como barganha na guerra de egos entre facções quase criminosas chamadas classe média e empreendedores. O que estava prestes a experimentar era um dos subprodutos desse abandono, algo como um bastardo filho concebido no calor de uma prensa vulcânica, metal no seu mais veloz ódio.

O sabor da ferrugem subiu pelas narinas no minuto em que o passageiro dentro do Palio azul acendeu o que parecia ser um cigarro, e era, mas ao mesmo tempo possuía uma natureza de zinco, alumínio e saliva queimada, eu como motorista, fisioterapeuta e também comparsa, sou a falta de vontade de meu passageiro, parte de uma irmandade em desequilíbrio químico em direção ao Viaduto Nove de Julho e a mineração de elementos estava apenas começando, o som irrompe as narinas vindo do rádio onde Guarda Belo não gosta das coisas assim assim e os Secos & Molhados liberavam as cores da cidade assim assado.

Quando a segunda tragada perpetuou seu caminho por meus alvéolos, um grande túnel abriu-se e percebi o assento do carro empurrado para mais e mais fundo da outra entrada, longe, a luz na saída do outro lado, piscava como um sinal dentro de uma barbearia comandada por lebres dopaminas prostitutas. A consciência trabalhava em outra velocidade, mais branda, como um longo felácio cheio de saliva rodeando a faringe, contaminando os olhos e os maléolos distais, tremores ao pé do ouvido ressoam trombetas e seu corpo imediatamente é envolto em uma folha de papel manufaturado alumínio, como um pedaço de carne assada deixada de lado na grelha.

O som eleva-se e diminui independente de sua vontade, o cuspe cessa e a saliva se torna ourives de segunda mão, coreia e balismo na mesma frase de infinitivo presente, tiques tsunâmicos de um sorriso mioclônico. O carro rasga a entrada na Rua Ipiranga e meu cérebro derrete em crack, barato quanto rápido, um pugilista sem a menor noção da força em seu gancho de esquerda, um vértice de abandono social maior do que qualquer redenção em amor nas ruas de São Paulo, e, mesmo assim hipnótico, como seu pau no meio de fartos seios e desenfreados lábios, o crack é o haicai das drogas, três linhas apenas de natureza ímpar e dois améns puderam ser ouvidos dentro do carro enquanto deslizávamos pela língua da Avenida Nove de Julho próximo ao terminal de ônibus.

Enquanto a rua retornava ao seu tamanho original, Hercleto apontava as árvores na via lateral onde estávamos e dizia que enfim esse túnel escuro dissipava-se na entrada do mudo paralelo. Pequenos aclives sem a menor possibilidade, como sempre desde aqueles anos dois mil e três, para se achar vagas de estacionamento, algo mais raro que sanidade. Naquele momento, onde o ar fresco estuprava uma passagem, a parada antes que em nossas mãos nascesse um rifle automático era obrigatória, a garganta enaltecendo a sede do álcool assolando o querer desistir, era preciso parar imediatamente. A entrada lateral logo depois da saída do túnel na Nove, que passa por debaixo da Avenida Paulista, convidativa estava ao mesmo tempo que escura, uma declaração de amor cego aos sincronizados pneus que rolavam nossas cabeças na direção do asfalto, esmagando sinapses e recolhendo os restos da alma que ainda insistia em manter-se em pé, mesmo com as repetidas tragadas no cigarro de amianto durante o trajeto.

O meio fio a sorrir desespero, as árvores arquitetando entroncamentos, arrancando o asfalto do marasmo seco e repleto em sacos plásticos com seus restos de humanidade, inundados por nicotina nascida no necrotério do que um dia foi parte do marco inicial na história da cidade. Uma curva à direita e uma subida recolocam nossas cabeças em traço, os sons não mais fazem sentido e as canções do rádio tornam-se pedaços de corpos jogados sangrando diretamente em nossas cabeças. ‘Pensem nas crianças mudas telepáticas’, as flautas roçando nossas nucas, línguas em chamas tocam o peito e por instantes a ereção parece possível mas inatingível, ‘pensem nas feridas como rosas cálidas’, o carro dança e o violão penetra minha pele sem piedade, ‘a rosa com cirrose’, tripas regurgitando os pedaços de asfalto solto, uma curva a mais e enfim chega-se ao oásis dentro do maremoto, o último resgate possível de seres humanos em conserva, as luzes nascem corroídas e pela metade, porém são tão fortes que jamais poderiam ser acusadas de negligência oftalmológica, ‘sem cor sem perfume, sem rosa sem nada’, como se pudesse existir algum sinal dentro desse labirinto, o poste foi escolhido como porto e assim se fez na oitava hora de loucura no oitavo dia, a visão persistente do paraíso em decomposição era como bálsamo à nossa fúria seletiva de homens brancos insatisfeitos com suas vidas.

O quarteirão construído pelas ruas São Francisco, João Adolfo e Quirino Andrade era naquela hora da madrugada uma construção de impossível arquitetura de entendimento raso e a praça onde a Ladeira da Memória instalava-se não parecia um refúgio onde o coração pudesse acobertar-se de catarse, assim o asfalto fustigado pela brisa serviu-nos de cobertor por alguns segundos onde colocávamos certos pedaços de carvão goela abaixo ou poderiam ser restos da pedra de crack que fumamos no caminho.

O combinado seria simples, aqui nesse quarteirão foi o local onde Hercleto pegara as pedras que serviram na confecção do cigarro, o lugar era novo assim como ele no lugar, então precisaria entrar no mais fundo pedaço da caverna para que pudesse achar mais pedras, a mineração é um trabalho muito desgastante, conseguir um traficante àquela hora no meio da semana travados como duas portas de cofre bancário não seria fácil, por isso cavar deveria ser feito com máximo cuidado, pois existiam pedaços inenarráveis de dinamite por todas as calçadas e a ladeira à direita desabaria no momento em que a primeira explosão fosse ouvida, os pássaros de longo bico e pelagem ácida nos bicariam os olhos e cegos vagaríamos por toda a eternidade da Memória, então nos preparamos agachados ao lado das rodas dianteiras, no contar três levantamos. Hercleto seguiu direção centro, eu direção bairro, ou ele centro eu bairro, ou nós centro e nós bairro. Andamos enfim e não vi mais Pantos, apenas depois de vinte minutos. Até lá, a arquitetura cinza dos prédios radioativos fazia-me companhia, entradas com portões descendentes de ferro exaltavam a mecânica das engrenagens de entrada, as feridas do calçamento sangravam esgoto e o cheiro era como uma gangrena clamando amputação, nos lados pares e ímpares onde a luz tornava-se mais sépia e perdida, os bares possuíam cápsulas de endoesqueleto com poucas necessidades, um cigarro, cerveja, aguardente ou qualquer tipo de droga, mesmo que ela fosse o desaparecer de uma vez por todas da face da terra. Como exilado dentro de minha própria cidade, andava até não sentir mais o ar desabar sobre minhas unhas, um cigarro aceso e lembro das estrelas cálidas ou seriam crianças?

‘A rosa hereditária, a rosa radioativa, estúpida e inválida’, sinto o cheiro de maconha e a obrigatoriedade em buscar sobriedade através do canhoto era a tônica, pois estava iniciando minha paranoia quanto ao paradeiro de Pantos. Na calçada uma mulher trans estava em restos de uma escada que em seus anos áureos fora passagem de marchas ou presos políticos e ainda lutas, agora iria separar por alguns escombros duas almas em distorção.

Sento-me ao seu lado e ela me pergunta se eu entendo onde estou, respondo que não e que estava esperando meu amigo que fora buscar crack em algum lugar dentro da selva, ela sorri e me diz que isso seria algo quase impossível e que Hercleto poderia encontrar-se com os verdadeiros donos da droga, os senhores da guerra. Como estava completamente enraizado na cocaína e com relances do cigarro no carro, a nicotina mantinha-me acordado e atento aos olhares lânguidos de menina, o batom rasgado e azul cobria a metade superior do lábio, bochechas em um terço de maquiagem e o cabelo longo, crespo e vermelho como um rio de lava emolduravam os restos do nariz cravejado por diamantes e pó, que provavelmente residiam em seu corpo por séculos. Suas mãos trêmulas em sépia filme tinham perfeitamente encaixadas em sua geografia uma lata e um isqueiro, o longo pescoço socrático rodeado por seis colares de cores intrínsecas, a pulseira de prata proteção contra predadores héteros confeccionada por algum padre caçador de vampiros hippie, ao longo da descida de seus braços me deparei com os encaixes cacheados de seus últimos e descendentes fios de cabelos em seus muhammad alianos seios. Ela me olha e diz que essa menina boneca faz de meninos brancos como eu sopa de letrinhas, que não tem tempo aos desamparos do amor em homens como eu.

Eu apenas sorrio aos mesmo tempo que suspiro. Valéria era uma monge budista, deixando parte de seu pau mostrar-se por entre a calcinha deslocada na saia que não existia, a lata em sua mão repleta com cinzas e pontos derretidos como calda doce, o cheiro de zinco no hálito era um batismo no Rio Jordão e seu semblante nada mais era do que a Virgem Maria, a virgem penetrada e tratada como Madalena, apedrejada e deixada nos cantos onde ninguém a pudesse encontrar ou ver, mais um ser humano deixado à beira do abismo, onde não existia Estado, não existia família muito menos um Deus, que provavelmente essa hora se masturbava em sua própria bosta, ‘pensem nas mulheres rotas alteradas, pensem nas feridas como rosas cálidas’.

Ela então oferece-me a lata, eu embriagado pelo zinco me rendo, quero beijá-la, mas sei que na verdade a minha vontade é colocar a língua na boca do dragão que Valéria segurava, a besta que soltava fumaça pela boca e em suas costas derretia lava e cinzas de cigarro, não me interessava mais minha hipocondria, ‘a rosa com cirrose, a anti rosa atômica’. Ela me passa a lata, ensina a colocar o isqueiro na posição correta, o polegar deveria ser postado na face anterior alcançando o gatilho, os dedos indicador e médio obrigatoriamente seriam colocados no terço inferior do artefato, deixando a metade de cima livre para que a chama não alcançasse os dedos, ninguém gostaria de queimá-los durante a tragada e assim jogar longe todo o material o que isso seria uma sentença de morte.

Enquanto me preparo, trêmulo, Valéria me conta uma de suas histórias de ninar para que consiga usar a lata de refrigerante da maneira correta.

“Quando você chega em São Paulo, pela Rodoviária do Tietê, a primeira coisa que você sente ao ver aquele amontoado de concreto e sujeira, as barracas de camelôs, o cheiro de hambúrguer barato e óleo dizimado em frigideiras paralíticas, é uma sensação de calmaria tão grande, que sua vida reencarna no útero quente de sua mãe imediatamente, é algo lindo e intoxicante, é a maneira que a cidade te pega pelas bolas e acaricia a cabeça de teu pau com saliva morna, aconchegando sua fase oral com perfeição, você rende-se e não tem mais volta, mesmo que com o decorrer dos anos a vontade de ir embora seja maior, é algo lindo e tenebroso, o tesão da vida logo que você chega aqui é inexplicável, então a primeira coisa que você procura é permanecer onde o tesão é mais forte e a sensação da mudança de vida seja ininterrupta, achar um lugar para ficar e um trabalho são as óbvias saídas, e, é nessa hora que você sente a reverberação do que está por acontecer, a volta da corda ao redor do pescoço começa a apertar, porém você está ereto, pronto para a penetração e não vai parar apenas por algum contratempo, mas a cidade é uma alma morta, só você ainda não sabe disso, a cada dia que passa ela te mostra mais e mais a cara do monstro, mas você está recoberto de êxtase, não tem saída”.

Eu trago a lata de novo, Valéria não liga e continua.

“Desde o começo São Paulo joga você nas cordas, pois não existe emprego suficiente para essa calhamaço de gente que a cada dia chega, não existe morada pelo mesmo motivo, e do metrô até a vida empurram seu corpo nos cantos e te prendem lá, asfixiado pelo prazer cosmopolita e enclausurado em uma medieval morsa que enterra seus ossos nos tijolos, aos poucos você começa a ser esquecido pela metrópole, de tanto permanecer apertado nos cantos, emoldurado em um quadro de carne humana que se acumula a cada dia, as pessoas acabam não mais enxergando ninguém, todas essas almas são deixadas lá, no quadro pintado por suor e sangue coagulado depois de vertido aos montes pelas veias abertas dos que são invisíveis aos políticos, moradores descendentes das grandes famílias aristocratas ex-residentes nos casarões do centro ou para a falsa intelectualidade elitizada que vomita citações europeias e acha que no Brasil do Rio de Janeiro para cima não existe nada higiênico, assim São Paulo aos poucos esconde seus moradores indesejados, isola suas almas em favelas, nos cantos escuros do centro, sem redenção, sem piedade e higienizados de toda a riqueza cagada na Oscar Freire ou nas Bienais, desse jeito a pirâmide se forma, desde os assassinos bandeirantes, até os especuladores de imóveis que aos poucos vão empurrando esse monte de carne humana para debaixo do tapete. Mas é nesse exato momento, onde não existe mais salvação, que Deus fornece a melhor ideia de todas, o crack, e, ele não é apenas uma droga, é a mais efetiva forma de revolução social que eu conheci, pois é visceral ao extremo e não tem mais volta, do momento em que penetra seu cérebro perpetua uma vontade inesgotável em manter-se embriagado por ele, em ficar eternamente sem sentir a miséria da tua vida que todos os dias acerta sua cara bem no meio dos dentes, essa droga é isso, não é um volátil modo de ficar chapado, é uma maneira eficiente de nunca mais ficar escondido nos cantos, amontoado com os restos de carne humana compactada, quanto mais se usa mais amortecido se fica desse isolamento e assim vagamos como zumbis que somos, criados em laboratórios da elite, controlados pelos senhores de guerra vendedores eficientes que nem ao menos sabem que estão nos deixando fortes, cada vez mais, e, chegará um dia onde seremos tão numerosos que será impossível não nos perceber, seremos um exército tão grande de pessoas vagando sem rumo e consumindo o cálice de Cristo que aos poucos uma sagrada aliança será impossível de não ser notada, tudo aquilo que estava escondido por debaixo dos ralos sanitários irá florescer, iremos ser vistos e ninguém mais poderá negligenciar essa situação, obviamente que alguns de nosso soldados irão morrer pelo bem da causa, mas uma revolução não se faz sem cadáveres e como sempre as pessoas de bem precisam sentir-se seguras, então seremos higienizados, mas o movimento não poderá ser interrompido, assim um dia vai brilhar a luz dos que são apenas a carne mais barata dentro dessa máquina. O crack é a saída da invisibilidade, pode escrever isso em algum lugar e me passa essa lata que teu rosto já me falou que você é um dos nossos”.

Não tenho mais outro meio de seguir vivo a não ser beijar Valéria. Nossas bocas trocam fumaça e eu me perco em meu espaço branco, como se encontrasse minha alma perdida em sua língua. Ela me interrompe.

“Uma dama nunca beija no primeiro encontro”.

Hercleto correndo chega exausto, com a voz embargada repete o mantra pelo menos setenta vezes:

“Nós temos que ir para a casa da Dona Geni”.

Parte II:

Pega a pedra na Geni,

Coloca ela na lata aqui,

Ela é feita pra queimar, ela seca até o cuspir.

Ela trava qualquer um,

A [maldita] pedra da Geni…

Era uma comparação feita por cromossomos que não ocupavam agora mais o lugar que um dia usaram como morada, algo que se esvaziou durante anos e não retornaria ao seu estado original, muito menos cresceria em intensidade, afinal de contas, lembranças quando amantes desse tipo de sensação mundana são incapazes de imprimir um saudosismo coronário. Entretanto é inevitável não usar a única analogia perfeita ao ato de construir uma lata para aspirar crack, nada além do que o verdadeiro amor.

Perfeito em sua intimidade, a causar trepidações musculares quando sente-se tomado pela vontade, uma dor de origem dulcínica como nas mais primorosas canções da música popular brasileira em festivais, o não agrado sempre recompensado na esperança do cada vez maior luxurioso tesão pelo objeto de desejo, ações que pedem um cuidado primoroso para que não se machuque a musa amada, a pedra filosofal da penetração intensa. O amor amórbido, inclusivo e sem prudência, que reflete dentinas expostas ao acaso dentro de um dia quente de quase primavera, quando você espera o almoço falando sozinho com sua gengiva. O amor, era essa a única comparação, um ato sublime de destreza humana, a agilidade e firmeza dos que se recusam a investir algo que não a própria vida por uma eternidade.

Escolhe-se bem o receptáculo do desejo, com a certeza de quem não deixará o simulacro da realidade escarpar pelas bordas, de preferência algo que misture alumínio e álcool, jamais refrigerantes de cola, pelo óbvio amargo ascendente que vai tomar seu cérebro ao primeiro impacto do corpo celeste “sempre esperei que existisse uma espécie de bebida que amortecesse a depressão subsequente, porém mostrou-se de impossível junção”, de preferência uma marca de cerveja que não possua transgênicos milhos ou trigos, “li algo como redução de danos e após alguns segundos residia em mim uma nova paranoia”, após encontrar o terreno, necessário é levantar o inventário dos móveis da nova casa, um garfo de sobremesa servirá com seus filetes férricos finos para a confecção dos orifícios, de preferência limpo, onde não existam resíduos de nenhum alimento que possa ao advento do incêndio controlado na pedra fundir suas moléculas gastas aos gases produzidos, nesse garfo deve-se torcer as pontas que não serão usadas, como se fosse a letra dê minúscula sem a oposição do polegar no dedo médio ou um quê confeccionado de maneira correta na linguagem dos sinais, também sem o polegar.

Assim que pronto o garfo inicia-se a construção da estrutura do ninho de furos, como na natureza dos pássaros eis mais uma analogia com o amor, cafona amor dos pássaros. Reside aqui uma pequena armadilha da química, outra dentre tantas que surgirão pelo caminho, relacionada com as duas forças que no evento da alquimia produzem centelhas destrutivas de umidade. Os restos do líquido dentro da lata ao se aquecerem, evaporam-se, direto contato então com a superfície da lata que contém os furos, as cinzas e a pedra, conclui-se assim a profecia do melado, onde umidade, cinzas e pedra tornam-se uma coisa só, impedindo a fumaça de atravessar as muralhas recém-formadas ainda com a juventude em suas selas.

Uma traição dos elementos químicos, como todas feitas na ausência de percepção das mesmas, destruindo aos poucos e de maneira certeira os estertores da bonança. Exatamente como o amor, que deve ser cuidado, a feitura dos furos é uma ciência tão exata quanto o respirar mecânico fisiológico do coração e existem duas técnicas que garantem essa devoção. A primeira consiste em desenhar um retângulo com quatro furos na horizontal e quatro na vertical, deixando um espaço entre eles não maior do que alguns décimos de centímetros, essa formação de dezesseis aberturas modulares deixam espaço de sobra para que a nefasta umidade escoe em direção à libertação do ar, do mesmo jeito que a produção de furos em três colunas de três furos cada, envoltas por dois círculos de furos no sentido da fuga centro-polo, também mostraram-se ímpares na solução do problema aquífero.

Feito isso, agora é a hora de conferir se as cinzas de cigarro adormecidas no cinzeiro de um dia para o outro encenarão seu papel de Antígona, a renúncia do viver em troca do enterrar Polinice, um de seus irmãos amaldiçoados, descendentes de Édipo e Jocasta, da pobreza e esquecimento, da falta de políticas públicas e inclusão capitalista, as relações incestuosas que geraram as cinzas e o crack. Antígona, anunciada pelo temeroso guarda do soberano no segundo episódio da tragédia, deverá cumprir cegamente seu destino heroico e morrer enforcada no melado e fumaça, reencarnada dentro de nossos pulmões como bálsamo, limpará e enterrará o crack Polinice nos arredores da lata. ‘Assim está percebendo o cadáver descoberto, prorrompeu em lamentos, proferiu iradas imprecações contra os sacrilégios, sem demora juntou o pó ressequido com suas próprias mãos e com um vaso de bronze forjado verte três vezes libações sobre o corpo antes de cobri-lo’.

Perseverantes, castas e quentes, assim elas devem ser para que o ritual possa completar-se de maneira épica, e só depois a maceração do crack dever ser a tônica. Iniciar o terceiro ato dessa sofocliana história requer o maior dos cuidados afinal, se tem o Graal nas mãos, e, a maioria das vezes ele padece pela falta de firmeza e constantes tremores.

Abre-se o invólucro e o cadáver de Polinice já sorri aos jarros de visão amarelada à esbranquiçada, “nesse dia a coloração era mais amarela do que branca, porém isso era menos importante devido as circunstâncias do local e dos presentes”, são pedaços medianos embalsamados e recobertos de poluentes, ‘senhor, não virá dos céus essa obra? Esta suspeita já me inquieta há muitos’. Corifeu oferece memórias aos desencantados pela vida, perpetuando a mórbida questão de alinhamento cósmico sobre que criou essa aberração química, mas nada importa, importa mesmo é depois de desembalada a pedra, não se ter mais pressa, o crack ao contrário da cocaína — derivada dela, porém com outra genética — pode permanecer por maiores quantidades de tempo fora de sua jaula plastificada, então nesse momento nada de apressar a vida como se uma proveta galopante fosse, pois ainda é necessária a confecção da pá e base pilão, ambas feitas em papel, um pedaço do cardápio para comida entregue em casa servirá.

Retira-se um retângulo maior para a acomodação de Polinice e outro em formato de prancha para a retirada de seus restos imortais, acomoda-se os pedaços de crack na base pilão e amassa-os, recolhe-se o produto da operação, despeja-os no topo de Antígona para que cumpra seu destino, ‘vou falar; o morto, alguém acaba de sepultá-lo, foi-se depois de cobrir o cadáver com pó sedento e cumprir com outras cerimônias prescritas’.

Abre-se então as câmaras de cremação pelas chamas do isqueiro, sempre nos ângulos de Valéria em libras vulcânicas, o crack enfim perpetua seu destino, o baque é imediato sem precedentes, sua língua adormece em milésimos e o gosto de fel descendente permanece vagando em suas narinas, língua e tronco encefálico, o diafragma entumecido perpetua com suas últimas forças a pressão negativa do infinito e os pulmões absorvem o vácuo existencial da droga com toneladas de fumaça radio ativada, “por que Hercleto me parece enfurecido?”.

Não existe pausa entre o tilintar de Polinice, seus pedaços e as reações enfurecidas do sistema nervoso, repetindo mioclonias esparsas e tremores, “trac trac trac, trac ti taque trac, trec trac, ta, ta track em fá sustenidos, uma linha aguda de distorção como nas oitavas acima”, assim canta o coral coberto pelas cinzas até a fumaça dissipar-se pela boca da lata, até o véu do não conseguir mover-se resumir sua vida em gotas de álcool evaporadas bailando sobre seus lábios, as pernas e braços parados, o cérebro em velocidade da luz, os olhos que parecem movimentar-se, “nistagmo”, mas é só a sensação de inércia pelo movimento incessante de sua cabeça, o corpo demora em situar-se dentro do espaço tempo, as dimensões apresentam-se como tendas de circo iluminadas por neons azulados, os eternos quinze segundos onde sua vida passa diante de seus olhos pintada por pasta base, ‘lágrimas te devolverão o juízo já que perdestes a cabeça’, nada se movimenta e tudo se movimenta, por centésimos os sons parecem trovões e uma agulha pode despertar a mais desabalada vontade de esconder-se atrás da capa do banco do passageiro ou da cortina da sala, em alguns casos acha-se o esconderijo alguns andares abaixo, espatifado com a cabeça rodada ao contrário para perceber se alguém observa.

Prende-se a fumaça o maior tempo possível e se espera o tempo necessário para que a dormência nas orelhas comece, assim os sintomas ganham vida e morrem dez minutos depois, deixando seu corpo pronto para o segundo baque, o terceiro, o quarto e assim por diante, a morada onde não existe o corpo real, onde não existe nada nem pressão do mundo, onde é seguro como os bicos quentes dos seios de sua mãe ao amamentar ou uma vagina rodeada por lábios úmidos dizendo eu te amo, o crack nos adormece da podridão da vida, mostra a ternura do perder-se em si mesmo, enquanto resgata o entendimento que não seremos nada além de átomos dentro da lata humanidade, nos aprisiona na libertação de todos os males, enfim o crack é derradeiro vagão de trem na Segunda Guerra segundos antes de ligarem as torneiras na câmara de gás. ‘Eu a enviarei a um lugar que nunca ninguém pisou, vou prendê-la viva numa prisão lavrada em rocha, de alimento só terá o necessário’,

“Hercleto continua calado”, ‘lá poderá invocar a Morte, único deus a quem rende culto para não desaparecer’.

Deixei Valéria e com os apelos seguidos de Pantos para que encontrássemos a tal Dona Gení, coloquei o carro em movimento sem ao menos saber exatamente para onde íamos, porém, meu passageiro de agonias por mais entorpecido e psicótico que aparentasse estar sabia exatamente a localização do oásis. Enveredamos pela santificada Avenida Rio Branco em direção à Favela do Moinho, porém não era esse o destino, mas nos arrabaldes, geograficamente localizado entre as ruas Ribeiro da Silva, Guaianases e Nothman, no conhecido bairro de Campos Elíseos, “local que moraria tempos depois”, antiga região de casarões dos senhores de engenho e empresários escravocratas que migraram alguns metros acima formando Higienópolis quando a presença de indesejáveis afro descendentes e população mais pobre não mais agradava as senhoras da elite residente no quase francês Champs Elysés, os pequenos comerciantes restantes, como sobras mastigadas em um prato de comida, viram seus clientes transmutarem-se em migrantes que chegavam à São Paulo instalando-se no que anos mais tarde ficou conhecido como Baixo Centro, muito próximo ao marco zero da cidade, porém sem a escuridão reinante nas décadas de setenta e oitenta. Era ali que Dona Gení e seu zepelim estavam instalados. Naquelas ruas quase apagadas e suas árvores centenárias, conglomerados de escapismos e surrealismos onde a riqueza de décadas passadas ainda resistia em algumas residências e o papelão do pós-modernismo estampado era em cada casa dos moradores de rua que ainda lutavam para manterem-se vivos, fosse debaixo das entradas no concreto do Elevado, fosse nas calçadas dormitórios beliches na Rua Vitorino Camilo.

O asfalto em cada esquina consumia o silêncio dentro do carro, nossas cabeças ainda em estado de latência, os cigarros ajudavam ao balbucio de palavras uníssonas, ideias condescendentes ou algum refrão de canções imaginárias, ela estava por perto, era possível sentir seus dois seios falsos percutindo hinos de louvor em tamborins elásticos, feitos da pele de algum cordeiro de deus que jamais retirava os pecados do mundo, ela estava perto e Hercleto sentia suas mãos embebidas em alfazema barata enrolando os plásticos sacos pequenos, estávamos perto agora e a excitação era descomunal, “mais um cigarro e precisarei comprar outro maço”, como se pudesse ouvir ao longe anjos clamando um quinto estásimo na primeira antístrofe, ‘a ti viram-te sobre rochas partidas a chama fumegante (onde dançam ninfas de Corico) e a fonte Castálida’.

Tebas enfim aportava em nossos olhos sedentos em epopeia grega, o carro parado alguns metros para trás do portão, acima do capô, uma amarração de galhos executada por dois mastodontes da fotossíntese, desse modo ficaríamos invisíveis, “precisamos ser rápidos por favor”, porém escondeu nossa visão das sombras que por trás de nós instalavam-se. Hercleto clama o nome de Dona Gení na porta, o relógio marcava exatos dez minutos depois das duas horas na madrugada, ela não atende, “se bem conheço Hercleto”, mais uma vez e de maneira nervosa ele aperta a campainha e grita, não existe resposta, sinto sombras apertando meus calcanhares e olho ao redor, nada, “vamos logo com isso porra”, Hercleto impaciente grita o sagrado nome mais uma vez, nem ao menos um suspiro é ouvido, mas Polinice não entende recusas, dentro de nossos corpos, doendo, o desejo de mais crack é mais impassível e forte do que nunca, as sombras sussurram nossos nomes, a campainha recebe outra pressão e os berros incessantes acordam os gatos da vizinhança, Hercleto grita, grita e mais uma vez grita, “pelo amor de alguma coisa atende essa porta”, as sombras derrubam um pedaços de galho mais baixo e automaticamente sinto minha nuca prestes a sofrer um acidente vascular cerebral, elas movem-se e meus olhos enganam-me com a figura de duas outras pessoas ao nosso redor, “não é possível acabei de olhar de novo e não há ninguém lá”, Hercleto chuta o portão, esperneia, eu acendo o cadáver do último cigarro que resgato do chão, minha saliva tão grossa estava que eu poderia usá-la como argamassa, as sombras agora falam um pouco mais alto, “eu acabei de escutar algo como vai devagar”, Pantos chuta o portão, meu peito prestes à explodir de ansiedade, engasgo em meu próprio inspirar, as sombras agora parecem mais com dois corpos, mas minha cabeça permanece morando em nuvens de desespero cego, “elas caminham, tenho certeza, elas estão aqui”, nossa salvadora não responde, o tempo corre mais rápido, Hercleto urra e bate no rosto da campainha, as sombras em minha nuca, meu ombro, “vou morrer aqui deitado como ninguém”, seu grito acende a luz da casa ao lado e nesse instante a porta de Dona Gení se abre, ao mesmo tempo em que as sombras apertam meu braço, sorrisos largos abrem o final da canção com violência de uma surdo de terceira em cima de minha cabeça.

Creonte e Tirésias eram dois policiais do Denarc, possuidores de uma caracterização tão clichê, que nem o pior roteiro noire poderia ser capaz de produzir. O governante da metrópole das bacantes era o mais velho, colete marrom imitando couro, branca camisa de botão circulada por manchas de suor no peito e axilas, falhas nas laterais da barba acinzentada, uma voz traqueostomizada como se Hal 9000 pudesse andar sob a Terra, calças de linho pretas impecavelmente passadas, botas escuras e duas sinceras meias roxas. Creonte era o chefe, empresário da venda de crack nas ruas adjacentes na chamada Cracolândia, tanto a nova quanto a antiga. No negócio desde o início, gerenciava os vendedores de Dona Gení, “sócia de longa data”, com ralos cabelos amarelados e sua prepotência, auxiliado por Tirésias, mais magro, quase um endoesqueleto deambulante em calças jeans surradas por intempéries do tempo, o andar gaseificado como se bolhas o levassem vagando por eternas ponderações do calçamento, bigode aparado nos cantos, perfazendo finos traços de pelos nos cantos da boca repleta em saburra oxidante, as mãos trêmulas em um nervosismo intrépido próximo demais do gatilho de sua ponto quarenta, pesada demais para os galhos finos que formavam seus braços, mesmo assim o baque dado por seus dedos em minha cabeça permaneceu doendo durante dias, maldito magro acelerado como se tivesse enfiado pelo nariz toda a produção de coca em Medelín.

A dupla ímpar jamais imaginaria que dois trincados pudessem estar naquela hora, arrumando confusão com a sócia de Creonte, ainda mais deixando claro que a lei do silêncio estava prestes à conhecer seus últimos inimigos e a polícia deveria tomar providências, infelizmente os homens da quase lei estavam estacionados ao lado de meu automóvel, porém sem meus sentidos operando em todo potencial, nunca os percebi ali, se não existia deus até aquele momento, depois disso ele virou-se e jamais mostrou a outra face para contemplação mundana.

‘Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou, nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceram para os homens, nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder se superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal’. Era tarde demais e Dona Gení com a maestria de alguma organização não governamental os fez entrar levando consigo dois lunáticos esvaindo-se em suor, desespero e quase arrependimento.

“As mocinhas vêm com a gente, Tirésias, olha o quarteirão e depois entra”.

Dona Gení, com seu vestido semiárido azul liderou o caminho, caminhava com dificuldade arrastando os chinelos de algodão pelo corredor coberto de folhas, a voz inalterada sempre, um riff de guitarra dos anos cinquenta -dois rés e dois fás dois acordes no máximo- abriu a porta lateral da casa. Desembarcamos dentro da sala, repleta em livros nas três estantes postadas na parede dos fundos, uma mesa de centro amadeirada em tons vermelhos, pintada à mão, enfeitada por uma toalha sexagenária soltando baforadas de tabaco egípcio, ao lado das estantes outro móvel onde dormia uma vitrola e duas caixas cheias de discos, alguns de setenta e oito rotações, “como eu largaria tudo agora para ouvir essas raridades”, a mulher então mostra as cadeiras e nos faz sentar, pede encarecidamente que fiquemos à vontade, “como se possível fosse com essa arma fora do coldre”, vai à cozinha volta com uma lata de cerveja vazia nas mãos e mais quatro cheias em uma sacola plástica, um garfo de sobremesa e um cinzeiro, quando despenca em uma das cadeiras é possível ver os dois seios mecânicos que servem como anteparo estético para os dois procedimentos mastectômicos que retiraram os de verdade, o sutiã preto parece mais cheio à direita, repousando no bico de candelabro estão pelo menos dez papelotes com crack escondidos. A visão quase erótica desses apetrechos é interrompida com a óbvia entrada de Tirésias.

“Tudo em cima chefia. Nada de viatura ou parceiros nos quarteirões, como sempre podemos fazer o que quisermos”.

“Tudo dentro da lei”. “Creonte sabia muito bem governar Tebas”. ‘Não te recomendo alimentar esperança nem esperar outro resultado’.

“Era uma comparação feita por cromossomos que não ocupavam agora mais o lugar que um dia usaram como morada”. Gení prepara a lata, a câmera inicia sua translação ao redor da mesa, ela volta seus olhos ao comandante e lhe fala sobre o lucro da semana. “ Até agora e sem retirar os salários dos vapores, pelo menos mil reais ao dia. Teremos problemas, porque essa semana um dos meninos descobriu outro vendedor na Helvetia, com o preço de dois reais o pacote, quebrou dois dos nossos dizendo que isso era coisa para gente grande”.

“Calma Gení, sua pedra ainda é e sempre será a pedra; esse moleque aí é capanga do vereador Cintra, aquele que mês passado veio com o plano de derrubar a Cracolândia na porrada. Esse vagabundo não sabe que se um dia o inferno cair, não será pelas mãos dos ternos e sim pelas bombas de efeito moral e cassetetes. O vereador sabe que o dinheiro está nas mãos dos zumbis e ele quer mais além da parte dele na Câmara, mas pode ficar tranquila que esse vendedor do vereador acorda sem a arcada dentária e queimado em breve.

“E os dois playboys fazendo escândalo, como duas putas com a buceta ardendo, quem são”?

“Hercleto senhor”.

“Eu não sou playboy”.

” Eu não sou playboy”.

“Olha só Tirésias, temo aqui com a gente um revoltado. Como cê chama playboy”?

“Eu não sou playboy”.

A câmera para por alguns segundos antes de iniciar a translação no sentido anti-horário, Creonte sorri com escárnio e Tebas acende um cigarro e oferece o maço aos presentes, Hercleto aceita, eu também. Espero o sangue escorrer de minha têmpora, porém ele não vem.

“Eu imagino que vocês estão aqui na casa da minha sócia obviamente não para venderem bíblias, muito menos pregar a palavra, o que seria de uma idiotice tamanha, afinal de contas neste lugar o Todo Poderoso não apita nada, aliás ele nem sabe que esse lugar existe, e não pense nenhum de vocês que vai querer algum dia redescobrir essa terra maldita, porque antes disso eu coloco o pente inteiro do ponto quarenta no rabo dele sem a menor cerimônia. Imagino que vocês playboys estejam aqui para comprarem o que eu vendo, meu ouro branco, a vagina mais deliciosa que você poderia lamber, a pedra, a bigorna do absurdo, não é mesmo”?

“ Mas como vocês chegaram muito tarde e bateram sem a menor educação na casa sagrada de Gení, só poderão ir embora depois que eu contar umas histórias”.

Hercleto não conseguia concentrar-se, olhava afiado a lata na mão de Dona Gení, chuparia os seios inexistentes dela se fosse necessário para conseguir colocar as mãos naquele invólucro de alumínio, “quero mais uma, quero mais uma, e outra e outra”, em minha cabeça apenas a vontade de arrebentar a cara de Creonte e Tirésias, sequestrar o sutiã de Gení e arrebentar pela Vinte e Três de Maio, subir no obelisco do Ibirapuera, equilibrar-me de ponta cabeça e descer a espiral maçônica de costas, Creonte aperta meu braço e com um sorriso ácido leva a arma ao meu queixo.

“Sabe qual o passeio que eu mais gosto de fazer com minha família? Aquele que coloca espanto nos olhos de minha esposa e deixa os nossos filhos maravilhados? Um lugar onde a natureza mostra-se com toda a sapiência que nenhum de nós poderá reproduzir m dia? O Jardim Zoológico, lá mesmo, onde algodão doce e répteis frios conseguem as mesmas reações de alegria, aquele lugar longe de tudo, cercado para sempre onde a memória, gostos e sons são maravilhosamente testados em nossa alma, como se fosse possível encarcerar a felicidade na vida dos animais, que se mostram em esplendor e selvageria”.

“O zoológico dominical, sagrado como uma santa ceia de fim de ano, invólucro do capitalismo naturalista, a metáfora perfeita para isso que você está vendo essa noite. O que vocês com toda sua sapiência, blogues e Facebooks não conseguem entender, é que isso tudo aqui é um imenso zoológico e os zeladores dessa merda toda, somos nós. Quem recolhe o excremento dos animais, os alimenta todo dia e chama o veterinário quando estão doentes não são vocês, deitados nas caminhas de lençóis arrumadinhos, jogando Playstation e fumando maconha, quem conduz a vida dentro desse safári é a nossa empresa, é essa ponto quarenta aqui na tua testa que produz o regimento da não revolução dos bichos, e como todo bom zoológico, esse aqui funciona com uma precisão que deixaria envergonhado qualquer figurão que possui orcas em tanques minúsculos, a administração mantém os animais cercados em jaulas imaginárias, você consegue entender que nós desenvolvemos um método de encarceramento que funciona sem a presença de nenhuma estrutura física”?

“Todos bichos trancados sem ao menos verem suas celas, presos e exibidos diariamente nos telejornais ou programas dos justiceiros nos tubos, esses bichos nem ao menos sabem que estão ali, sabem o que precisam comer, a ração na lata ou no cachimbo, apenas restos de mamíferos bípedes, como as jaguatiricas presas no seu cercado, eles apenas imaginam o que possa ser a liberdade, mas nossa estrutura é tão perfeita que eles não querem saber de porra nenhuma, só interessa a pedra, o próximo trocado que ele vai pedir, roubar ou trocar para que nossa cota de ração diária seja entregue com beleza, a nossa empresa é tão benevolente que entregamos até os cachimbos, eles ficam lá parados, não saem nem vão querer sair, são nossos de estimação até o momento em que morrem e trocamos os defuntos por outros mortos vivos”.

“Vocês assistem, reclamam de vez em quando, mas é só, como no zoológico dos quadrúpedes, aqui a sociedade de bem paga o ingresso, assiste, e, de vez em quando, torna-se um deles, porém a jaula de vocês é outra, aqui vocês vêm para sentirem-se mais perto da loucura e da selvageria, mas logo depois também voltam para seus cercados, e só. Párias e mais párias que lhes dão uma aventura de humanidade tão nefasta que é bem melhor para todos que apenas se discuta o assunto, porém nada se faça, é aí que nossa administração entra, nesse buraco que vocês com suas barrigas encostadas na mesa do computador deixaram, no vácuo de seus votos que entramos, porém como todo serviço, nós cobramos, e cobramos caro. Ou você acha que alguém que cuida da bosta de algum animal desses vai fazer isso pelo salário que a tua sociedade estipula”?

“Essas ruas todas deixadas de lado pelo simples fato que ninguém quer saber de mexer na sujeira deixada embaixo do tapete são nossas, administramos, conduzimos o negócio e ai de quem quiser retirar nossa liberdade dentro do capitalismo, nada vai roubar essa empresa da gente, nem o Estado, nem o povo, nem ninguém”.

Tirésias, Hercleto e eu estamos meramente escutando as frases de Creonte, pois tragamos mais do que devíamos a lata, talvez isso explique o que aconteceu em seguida, uma náusea que acometeu minha vista e dilacerou meus braços em seis pedaços de igual perímetro, o asco de sentir-se preso na cela pessoal, que me espera com as pernas abertas, a anestesia dada todo dia, o tapa buraco de uma alma vazia que insiste em ficar entorpecida com todas as tecnologias existentes dentro da sociedade, o involuntário marasmo da vida executado com perfeição durante os dias, a hipocrisia em usar vermelho com a mão esquerda me riste, com a cabeça presa nos moldes escravocratas, dependendo de senhores do zoológico para que minha humanidade seja mostrada sem filtros e da pior maneira possível, eu tinha nojo de Creonte, mas ele era um pedaço de mim naquela sala, ele era eu ao avesso dos meus restos, o comandante do meu invisível mundo, e, eu tinha uma enorme vontade em chutar seu saco quando me mostrou o espelho. O tapa mal dado na arma que se espatifou na vitrola, os berros exalados de minha faringe. ‘Tudo indica que tarde reconheceste a injustiça’.

“Você é um grande de um filho de uma puta corrupto, um arrombado do caralho que mata essas pessoas aos poucos apenas para manter esse seu pau murcho duro”.

A mão de Creonte em minha garganta sufoca a respiração, aos poucos sinto que morreria ali, chapado de crack e nicotina velha. Apertando mais e mais, expelindo os últimos resquícios essenciais pelo meu rabo. Gení então com a paciência de uma sacerdotisa expele seu pensamento.

“Creonte, larga esse merda, imagina a cagada se acontecer uma morte aqui dentro”.

O comandante espera mais um pouco, se diverte com a suposta morte, solta meu pescoço e respiro enfim o resto da minha cota diária de ar, Dona Gení nos dá trinta pedras de crack e nos manda embora. São quase quatro horas da manhã, quando Hercleto no banco do passageiro monta outro cigarro com a droga e restos de tabaco, estamos ao lado do Parque do Ibirapuera, voltando para nossas jaulas, na minha cabeça imagino-me em quatro apoios, relinchando dentro de um fardo de feno infinito, e, quando olho o obelisco penso que seria uma ideia idiota descer por ele de costas.

Parte III

O Resto da Alma em Linhas Pares e Ímpares…

Pois então eis uma revelação que permaneceu escondida quase durante décadas, algo tão

Seis meses passaram-se desde o encontro com as intempéries de Sófocles, visitadas por

incomensurável quanto as dimensões da matéria negra que acertadamente permaneciam

nossos inertes corpos azuis, Hercleto e eu afundamos aos poucos dentro da paranoia do

ocultas, como se assim pudessem auto flagelar-se no escuro, rezando tons em sépia para

crack com uma vontade destemperada, dos possíveis sete dias da semana, usávamos todas

permaneceram escondidas, sitiadas por seu próprio apodrecer, como Heráclito enterrado

pedras descontroladamente por pelo menos seis, o disponível dia era usado nas ilusões ou

nos excrementos mundanos até o pescoço, uma podridão de arredores febris, carcomendo,

nos compromissos familiares, tempos depois esquecidos por Hercleto completamente, e,

exalando sua genética que permanece invisível aos olhos humanos, um pedaço de bosta

de minha parte um abandono aos últimos pedaços de humanidade que ainda restavam na

mais ferrenho em odor, assim foi como me escondi de você meu amigo Hercleto, perfeito

alma. Mas não fomos apenas nós dois os desconfigurados, a soltar pedaços de identidade,

grande pedaço de merda que permanece encostado à sombra de uma árvore por dias após

tropeçando por entre os dias, esperando a língua podre do asfalto consumir nossa alma e

ser excretado por algum cachorro de madame na Rua Pamplona, assim foi, “mas não foi

infinitamente varrer da existência do Cosmos nossa presença, não, não fomos os solitários

proposital, posso assim pensar”, porém, certas evidências de minha fuga foram libertadas,

eunucos. Uma cidade toda após esses passados seis meses sucumbiu ao zoológico familiar

liberadas pelo caminho, como pistas de um assassinato deixadas ao acaso, desesperadas

de Creonte e do crack, o preço despencou e ao final da primeira década dos anos dois mil

por serem descobertas, todas estavam lá, quando escondia os restos das pedras por baixo

, as pedras poderiam ser encontradas pelo preço de dois reais, isso forneceu a divisão pura

dos papéis picotados onde amassávamos o crack, para, após levar-te em cambaleante som

do centro da cidade em pequenos territórios ocupados por silenciosas armaduras de metal

do carro ziguezagueando tiquetaqueares das marchas, pudesse fumá-las ao final da noite,

controladas por escravocratas pós-modernos, a Joy Division encarcerada na genética dos

escondido por debaixo da mesa na sala, usando umas toalhas quadriláteras como proteção,

helicópteros, carros de avanço rápido, infiltrados, sacos plásticos de milimétricos cortes

quase queimando a casa toda depois de adormecer com a lata em minha mão, “estavam

, os atravessadores manufaturando franquias, disputando restos da tonalidade esquecida

lá, todas as pistas estavam lá”, nas horas onde não atendia ao telefone, pois o estalido das

da pele, pessoas crônicas da doença mesclada. Outros, ressonantes da síndrome violenta,

badaladas trincadas na campainha davam-me tremores bem maiores que os seus ao tentar

genética repleta do que — quase por uma década agora — instala-se hereditária nas sombras,

fluir pelo prédio, através da frágil canaleta por onde o aterramento descia, após a ingesta

passada por gerações até chegar aos lábios e mãos que vivem em nosso tempo, aura que

de um litro do álcool com groselha, as pistas malditas, covardes evidências de um esforço

a andar desapercebida por entre os dias, movendo-se lentamente na direção dos corações

débil, quando do nosso contar todas moedas inexistentes, que nos levavam sempre às duas

maternos que prescrevem leis sem doutores, manufaturadas na aristocracia e antes disso,

últimas pedras ou parados no estacionamento daquele supermercado, dois zumbis vivos,

na escravatura. Sorrateira com aneladas escamas, correndo em direção à língua bifurcada

tentando convencer o caixa eletrônico que deveria nos dar o dinheiro, pois a esmola seria

exalando veneno, enfeitando o genoma eucarionte passando-se por definições da moral e

bem utilizada. Sim meu amigo, irmão Hercleto, pensamentos que me assombram até hoje,

bons costumes, são fenótipos exteriorizados nas piores versões do ser humano, misoginia,

quando ando desavisadamente com meu cachorro pela Barão de Limeira, sinto completas

racismo e eugenia, corriqueiras conversas de bar tão eloquentes quanto discursos nazistas,

as vozes de Creonte e Tirésias, os seios inexistentes de Dona Gení exalando alcaloide vil,

todas essas ideias perfazem o caminho cada vez mais intrínseco pela alma da humanidade,

tenho náuseas decrépitas toda a vez que lembro do meio fio ao lado da pizzaria suja onde

o pós-modernismo apenas tratou de estampar seu rosto em uma manta asfáltica, fundida

te encontrei, após exauridos telefonemas de sua irmã, “não os atendia de vez em quando”,

em piche e lava nas arestas, imperceptível tatuagem escondida na nuca, revelada como se

pedindo que te encontrasse, essas visões me assassinam como uma doença venérea cinza

fosse polaroide que se auto destrói após ao segundo parágrafo. Os homens transformados

mal curada, deixada de lado, desprezada, mesmo com seus incessantes pruridos na glande,

em cinzas, as cinzas queimando em viciados, os viciados como povoamento comprador,

eu, deitado ao chão do apartamento na parte sul da cidade, lambendo azulejos onde jaziam

os compradores em mutação para massa de manobra, a massa de manobra rechaçada com

limpas centelhas de vodca com suco de laranja, deixadas lá ao tentar equilibrar um prato

violência, a violência em alquimia com o poder paralelo, o poder como valor de barganha,

cheio de cocaína, a lata e o copo, malditas dicas, malditas eternas elas Hercleto, fodidas,

nas esquinas, esquinas e mesas, mesas e gabinetes, gabinetes e residências, residências e

todas elas, todos nós, as pupilas dilatadas e os corpos lúgubres e semimortos, o antepasto

enfim a violência retorna ao homem, parte indivisível do mesmo. Os produtos dessa forma

na televisão em sussurros, o andar nervoso dentro da sala esperando a todo minuto a porta

residem em cada mulher estuprada, a cada justificativa xenofóbica, no queimar índios no

ser arrombada por seres, a prisão, o acidente vascular cerebral, coisas que jamais vieram,

calçamento, nas religiões opressoras e suas leis raivosas e homofóbicas, tudo está lá, mora

como eu, “malditas sejam elas”. Sou capaz ainda de sentir o cheiro das pedras nas cenas,

sem cerimônia na genética dos senhores de guerra, seguidores e simpatizantes, reverbera

telejornais e em alguns casos posso até sentir o alumínio da lata corroendo minhas narinas,

nos discursos de ódio na binariedade internética, ecos feitos por papagaios subalternos da

ainda escuto teus olhos paranoicos como o androide de Thom Yorke, o esperar tuas duas

selvageria. A Cracolândia tornou-se um depósito sem reciclagem, onde tudo e todos eram

mãos enforcando-me pela partilha não correta, náuseas, ainda me atormentam lembrando

varridos para debaixo do tapete, colocados no lado de fora das vendas usadas pelo povo,

dos inúmeros cigarros mártires nicotizados esfacelados em menos de meia hora, as dores

a cegueira corriqueira tornou-se altamente viável, como uma moeda de troca, “nós vemos

tornando-se funcionais cinzas Antígona, eles estão todos vivos, como espíritos japoneses

o circo, porém não enxergaremos”, nada que não bateu ainda em suas portas lindamente

de terror, atormentando meus sonhos com seus cabelos longos e pálida epiderme. O poço

esculpidas pode ser tão importante assim. Todos salvos pela programação do Soma, nada

da minha alma sabe que o ódio de sua mãe tem razões de real verdade consumada e aflita,

além. Esperando apenas a arrebentação da barragem, o destruir moinhos por especulação,

pois o patafísico conhecimento que minha existência toda é baseada no ato do contrariar

antes do apagar das luzes o delírio foi pá de cal nos holofotes, a rigidez dos cadáveres a

livrou-me do destino onde teu corpo pereceu, assim consegui distanciar-me dos poentes,

retirar os tapa olhos, quando quase todas as biqueiras iniciaram seus negócios com a pedra

consegui não mergulhar. Isso não salvou-me depois, porém a cabeça dentro d’água estava,

, uma concorrência resolvida pela única moeda corrente, vivendo nos becos entrelaçados

inerte, esperando que o mundo concertasse aquilo que estragamos, como se a culpa não

pela madrugada com ou sem garoa, as armas, as propinas e as almas, vendidas cada vez

existisse, “e não existiu em verdade, porém na história”, por isso Hercleto, camarada meu,

mais e mais. O movimento então regurgitou-se, levando o gosto de ácido gástrico em cada

essa é a ligação que nunca fui capaz de atender pela completa falta de latinos americanos

boca, remoendo as pessoas acordadas rápido demais. Inúmeras afastaram-se sem perceber

culhões. Os baseados fumados nos anos subsequentes jamais puderam apagar as feridas,

onde estavam e como fariam para, por entre a névoa, retornarem aos seus estágios larvais,

o silêncio imponderável entre as conversas ralas onde eu escondia que cheirava dentro de

outros resolveram intervir colocando muitas vezes a vida vagando pelas linhas corrosivas,

sua casa para que não ligasse o modo suicida, nada disso conseguiu desconstruir mazelas

onde equilibrar-se tinha como essência saltar. Existiram ainda aqueles, que moveram seus

deixadas, nenhuma das lamentações solitárias no fundo do banheiro público sujo capazes

corpos na direção da saída, “como Hercleto”, sobreviver após presenciar — e viver — tudo

foram de redimir os erros cometidos pela minha falta de coragem, “porra de vida Hercleto,

o que aconteceu era algo impensável naqueles tempos, assim viciados recaiam intensos,

porra de vida”, você era como a folha no mata borrão, esperando uma maldita análise do

uma, duas, três, quatro vezes, quantas forem necessárias ao pulmão, para que sorvesse do

filho de uma puta Sartre, a inércia de conteúdo sensível, existia apenas para você mesmo,

ar puro. E como sempre acontece na história, os corpos depositados apontavam o caminho

eu não poderia produzir nada pela minha espontaneidade relacionado ao seu existir coisa,

dos que saíram. Enfim um Paraíso paulatinamente palpável horizontalmente era possível,

era como se você fosse aquela branca inércia escapando da dominação da consciência, as

e como não poderia deixar de ser, o espírito humano, tal e qual uma barata, continua andar

tentativas em continuar respirando, “keep, keep breathig, I can’t do this all alone”, e eu,

infinitamente, retorcendo-se pelos cantos, escapando pelas arestas onde existe umidade e

eu, vagabundo rindo um sorriso sem espinha dorsal, esperando ser sufocado e morto pelas

conforto em abundância, rejeitando o papel imposto, os bons costumes, estatísticas, moral

mentiras, preferi olhar o papel de parede cinza no vazio do ser alguém morto, sem escapar,

e boas condutas. Lá, nesse lugar, um platô alpinista de segurança à beira do penhasco, só

não existia nem uma canção, “sing us a song, a song to keep us warm”, nem uma melodia

lá foram encontradas luzes em programas políticos humanistas. Antes porém, no intervalo

que pudesse reverter essa covardia em deixar teu corpo padecer no nosso vício, eu merecia

entre o planalto de salvação e a explosão do crack, algo que vivia no lodo das sombras a

ser sufocado e assassinado por ter escolhido o papel de parede, talvez um dia uma morte

permanecer eternamente escondido em porões onde mães proferiam educação católica, e

lenta, dolorosa e repleta de mazelas seja o presente do Universo à minha covardia, único

uma demanda pela bem sucedida forma de viver feliz nesse mundo de merda, despertou.

pilar daqueles tempos que deixou-me longe desse caos. Contudo, mesmo olhando para o

O sopro podre dentro da alma humana adormecido, porém, vivo, respirando pela traqueia

outro lado, ei-lo de novo, não sendo para mim, mas, suas formas, cores e posicionamentos

aberta, homem subverteu as teorias cartesianas, queimou os ossos de Sartre, imaginação

me aparecem muitas vezes mais, nunca consegui vê-lo, sempre percebi quem era no mata

escalpelada em golpes febris, a materialização da realidade no homem seguiu um caminho

borrão, independente de avistar a presença da folha no meu campo de visão, sabia que era

completamente distinto, pois conseguiu encontrar duas consciências distintas, separadas,

ela, você Hercleto naquela mesa a aparecer de novo em sua forma, cor e posição, eu erudia

por completo antagônicas, porém vivendo no mesmo tempo, no mesmo corpo, a formação

sua pessoa assombrando-me as arestas dos olhos, a essência remota da existência, mesmo

da imagem dualista, preocupante menos pelo paradoxo, mais pelo fato do homem iniciar

sendo as duas identidades irmãs separadas do mesmo corpo, o seu, ali deitado na sarjeta,

o processo de construção da imagem — e subsequentes ideias relacionadas -, seguindo até

segurando o prato quente enquanto entupo meu nariz sozinho na sexta à noite, sempre a

cartesianos padrões iniciais, ao mesmo momento em que constrói um retrocesso, a ideia

mesma folha, sempre o mesmo você, não impondo limite à minha espontaneidade, e, ao

formada é nascida de uma interpretação errônea da imagem, uma matemática imprecisa,

mesmo tempo nunca fostes um ser inerte existindo em si, você não existia de fato, apenas

cálculo onde adjetivar pessoas era de uma precisão decimal, a coisificação do ser humano

era o existir em imagem, uma sombra dentro dos meus globos oculares, uma ineficiência

tornou-se algo palpável, taxar negros, pobres e mulheres invadiu cadeias genéticas, o gene

dentro da minha amoralidade, “wake from your sleep”, nada mais do que isso, e assim foi

defeituoso como aqueles que transmitem doenças inalcançáveis. Essa interpretação, uma

pelo tempo em que preso permaneci na lata, nas cinzas e no crack, “there’s such a chill,

infinita doença, não tem preferência de ataque, progride em novos, velhos, sem gêneros,

such a chill”, “we hope that you choke, that you choke”, uma ingrata luta onde ouvem-se

ou cor, tem uma preferência social ligeiramente tendenciosa, e resiste. Lutador verdadeiro

apenas vitórias ao longe. Mas uma dessas, foi exatamente a sua contra a maldita sombra,

esse maldito, não aqueles que matam com um soco apenas. Lentamente golpeiam o fígado

que vivia escondida e nos foi mostrada aos poucos, sem tempo de adaptação. Pedras voam

, assim é que este boxer dos mil infernos luta, implodindo hemácias hemorrágicas. Ódio

nas calçadas desesperadas, pairando de maneira a não causar muitas lesões durante

disseminado na forma de moral torta, contra mulheres, moradores de ruas e viciados, esse

os saltos, os deformados saltos na direção do Paraíso. E eu sempre me lembrarei de Julio,

foi o verme que surgiu das sombras, principalmente na primeira invasão da Cracolândia,

o Cortázar, (são controladas por Ozymandias), e seu jogo da amarelinha, platôs deitados

antes do platô. Ainda hoje acontece sempre que Creonte sai para coletar o sangue que lhe

na forma de caleidoscópicos, (a ideia formada é nascida), as palavras que sempre faltam,

fornece vida. Impedindo que se chegue ao Paraíso quando a pedra percorre o arvoredo do

encontradas em outros lugares, páginas e distantes capítulos, o vagabundo Cortázar e seu

chute na brincadeira em Cortázar, a amarelinha que se joga involuntariamente ao abrir de

jogo, essa busca por uma normalidade imposta nas rodas dos clubes intelectuais, a forma,

os poros e olhos no que se chama de vida. Pois é necessário que se discuta essa aparição,

o conteúdo obrigatório de se tentar ser alguém nos fugiu por tempos e tempos, a salvação

sejam grupos ou pensamentos e ações, ideias, palavras ou forças, independente da nefasta

só atingida quando vimos as pedras lançadas, resvalando em linhas de giz coloração telha,

forma residir desde os primórdios em nosso meio. Quando se enxerga esta profusão, não

no círculo desenhado representando o maldito fim de jornada, a amarelinha, (uma sombra

mais possível é apenas pensar, que a tecnologia iluminou ao acaso o monstro que já estava

dentro de meus globos oculares). Sim meu amigo Hercleto, meus erros me assombraram

lá. Racismo, misoginia e eugenia são palavras reais, assim como agressões, Frankenstein

por anos, um rastro de silêncio descabido (boxer dos mil infernos), com residência cativa

planos de consciência física, existencialismo da lógica deturpada, que em proporções

em minha alma, matou-me aos poucos com uma sombra maldita sem existência, nesses

largas demais, causam estragos. É preciso pegar a pedra e jogar de novo pelos números.

tempos todos a única coisa que eu conseguia ouvir, eram as vozes de Horácio e Maga,os

dois como duas entidades separadas, buscando paraísos desiguais, vidas inexatas,
encontrando-se apenas nas paralelas e ruas com nomes decorados, os clubes e suas não respostas, os intelectos mudos, maldito Cortázar e sua amarelinha. A esperança em saber que a vida continua de uma maneira ou de outra, o nascer do teu perdão que um dia talvez mereça, e, quem sabe o tenha. Sempre como o jogo. Porém, as únicas palavras que eu conseguia proferir antes do apagar das luzes eram, maldito Julio Cortázar, maldito Cortázar, maldito Julio.

Cortázar.